No presente ano de 2014 já muito pouca gente concede atenção
a qualquer desporto que não envolva bolas a serem chutadas. E no entanto, ainda
que esteja intrinsecamente ligada à cultura do meu país, não compreendo as
mais-valias de uma tão exaustiva exposição.
Conviver? Convive-se mais a jogar à sueca. Debater táticas?
Poder-se-ia fazer o mesmo com xadrez ou snooker.
Viver vicariamente as emoções vitoriosas da nossa equipa favorita? Oh meus
caros amigos, não vejo nem oiço ninguém a emocionar-se com os nossos campeões
mundiais de remos…
Por isso, e principalmente depois da desilusão emocional do
EURO 2004, distanciei-me do futebol e procurei refúgio num outro tipo de
desporto: um que se adequasse mais à minha maneira de ser e aos projetos que
tinha mapeados para o meu futuro. Um desporto em que se visse claramente o
sacrifício que cada um dos atletas fazia, não só como meio de competição, mas
como meio de entretenimento.
Porque falemos a sério: qualquer desporto, para o povo, é
somente divertimento. Um passatempo, uma distração e, por vezes, um sonho.
Distanciei-me dos sonhos, mas mantive a cabeça no objetivo: envolvimento e desenvolvimento.
O desporto que eu escolhi foi descredibilizado à 7 anos
atrás, quando um dos seus mais proeminentes representativos, após décadas de
abuso do seu próprio corpo em prol do «entretenimento» dos fãs, assassinou a
própria família e cometeu suicídio. Mais tarde veio-se a confirmar que o seu
cérebro tinha sofrido várias contusões ao longo dos anos, tendo perdido
completo controlo das suas ações. O órgão mais importante da condição humana
ainda é um mistério…
Desde essa altura, as companhias que organizam este tipo de
eventos triplicaram os seus esforços na maneira como protegem os seus atletas.
Foram tomadas medidas para assegurar a sua saúde mental e corporal. No entanto,
o estrago está feito, e o que muitos antes viam como uma arte de contar histórias
com o corpo, é agora visto como uma novela para crianças, falsa e sem
interesse.
Falo, por tanto, de wrestling profissional.
Sim, isso mesmo que estás a pensar: homens suados de tanga a
correrem uns contra os outros, a fingirem que são zombies ou que controlam o
fogo. Mulheres com mais plástico que carne no corpo. E pior que isso: eles nem
se aleijam a sério! As lutas têm resultados pré-determinados! «Como raio podes
considerar isso um desporto?! Isso é tudo a fingir!»
Ao contrário da maioria dos desportos, cujo objetivo é
suplantar o adversário, «jogando» melhor do que ele, no wrestling essa
competição existe na maneira como consegues interagir com o coletivo de
espectadores.
A competição é não um ultrapassar o adversário num
cara-a-cara, mas em conseguir a atenção do público.
E existem várias maneiras de o fazer: chamando nomes a toda
a gente, tendo catch-phrases que o
público possa dizer contigo e, principalmente, fazendo truques que deixem as
multidões boquiabertas.
Agora digam-me lá: não é exatamente o mesmo que acontece com
jogadores de futebol como Ronaldinho Gaúcho, Zinedine Zidane e outros que tais?
Quanto melhor jogam, mais t-shirts vendem e em melhores clubes jogam.
E tal como jogadores de futebol, que têm de treinar e lutar
por um lugar nas melhores equipas do mundo, também os wrestlers têm de
esgravatar e, literalmente, sangrar por cada elogio e reconhecimento na sua
profissão. A liga principal onde esperam chegar chama-se WWE (World Wrestling
Entertainment) e o seu evento principal chama-se Wrestlemania: o palco dos
imortais, em frente a 80.000 pessoas, sendo que só os melhores do mundo lá
metem os pés.
Mas como em qualquer desporto, tudo começa com um sonho.
Na década de 80 houve um fenómeno chamado Hulkamania. O lendário Hulk Hogan defendia
o seu título contra monstros de 2 metros de altura e 200kg, ao mesmo tempo que
dizia a todas as crianças (ou como lhes chamava, Hulkamaniacs) para tomarem as suas vitaminas, dizerem as suas
orações e nunca desistirem dos seus objetivos. Ora, Hogan, com a ajuda de
outras personagens lendárias como «Stone
Cold» Steve Austin, The Rock, The Undertaker, Triple H, Shawn Michaels e
Bret «The Hitman» Hart criaram as
bases para o que viria a ser um fenómeno cultural sem precedentes. A
Wrestlemania, evento anual, tornou-se numa Super Bowl, numa final da Liga dos
Campões para fãs deste desporto, levando à deslocação de grandes quantidades de
turistas para participar na celebração.
E no meio dessas multidões, no meio da euforia que rodeava
estas celebridades «maiores que vida», estavam as futuras estrelas: as que
neste dia, 6 de Abril de 2014, vão participar na 30ª edição deste evento.
Estrelas como Daniel Bryan, John Cena, Randy Orton, Brock
Lesnar, Batista, Dolph Ziggler, Bray Wyatt, Dean Ambrose, Seth Rollins e Roman Reigns… Todos a
lutar desde uma idade precoce para serem o melhor e poderem constar entre os
seus ídolos de infância: alguns das quais permanecem no ativo, criando
situações de conflito entre os novos talentos em ascensão e lendas que querem
mostrar que ainda não estão prontos para «pendurar as botas».
E quem segue esta modalidade tem oportunidades que noutros
desportos não existem: de ver os ícones de gerações completamente distintas a
defrontarem-se ferozmente.
«Mas eles não se aleijam a sério!»
Eu comecei este artigo a explicar a consequência mais grave
que este tipo de competição já teve. No entanto, existe toda uma coleção de
imagens gráficas que elucidam o porquê de isto não ser brincadeira nenhuma:
pescoços e clavículas partidos, retinas deslocadas, costas separadas, orelhas
cortadas e dentes partidos, só para enumerar alguns dos mais comuns. E estes
rapazes e raparigas fazem isto 7 dias por semana, 30 dias por mês, 12 meses por
ano, com muito poucos dias de descanso.
A resistência necessária e o desgaste físico é monstruoso, e
no entanto, grande parte da população que «conhece» esta modalidade, não lhe
atribui o mínimo reconhecimento.
Contudo, não reclamo o título de desporto para o wrestling
profissional: aliás, até está mais próximo do título de série televisiva.
Porque tu vês séries pela história que te contam: independentemente de serem ou
não reais. O mesmo se passa com wrestling, embora este esteja intrinsecamente
ligado ao desporto, tornando-se por isso num elo perdido.
Perdido mas não esquecido.
Pois ainda existem aqueles que conhecem este segredo: onde o
drama de enredos complexos é misturada com a possibilidade de seguir o teu
atleta favorito, o teu herói, do desconhecimento total até às glórias que o
esperam no panteão.
E ter esperança, que neste mundo onde tudo aponta para
negativismos constantes, aquele/a que trabalhou e se esforçou, realmente vença.
Para que, no final, o bem esteja sempre acima do mal.
Mesmo que seja só «a fingir».
Excelente artigo! Brutal, estas de parabéns!
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