Culpo os cromos do mundo.
Culpo-os por existirem e não falarem. Culpo-os por estarem
de barriga para o ar à espera da vida que sempre sonharam. Culpo-os (por vezes)
por trabalharem demais e deixarem o que é importante de lado. Também os culpo
por pintarem um mundo cheio de cor e magia, desaparecendo em seguida numa névoa
de confusão.
Utopia é uma série sobre cromos: cromos como tu, cromos como
eu. Pessoas «sem problemas suficientes» na sua própria vida, por isso vão
arranjá-los lá fora. Mas se és verdadeiramente um cromo, sabes que meter a
cabeça fora da toca, cheirar o ar puro e queimar os olhos na luz solar dói.
É melhor trazeres uns óculos: Utopia pode cegar-te.
Quando um grupo de zé ninguéns encontra uma novela gráfica
que, supostamente, contém pistas para a maior calamidade do nosso século,
começam a ser perseguidos por uma panóplia de personagens bizarras e
psicopatas.
Os méritos desta série vão muito para lá do clássico «efeito
heroína» que as grandes séries injectam na tua corrente sanguínea: tudo em
Utopia explora o conceito de BD realista. Com claras influências do (também) britânico
Edgar Wright, a cinematografia de toda esta série é simplesmente orgásmica.
A composição dos planos é tão meticulosamente preparada que
até mete nojo. Tudo, desde as cores, passando pelo movimento, até aos objectos
que separam os corpos são planeados e executados de forma imaculada. Embora
adore Firefly, Fargo, True Detective e Breaking Bad,
arrisco-me a dizer que Utopia é a mais bonita de todas elas.
Antes de me crucificares vê a série.
A excelente banda-sonora nunca te acalma: deixa-te alerta.
Como se o perigo pudesse aparecer de qualquer lado, de qualquer pessoa, em
qualquer altura, de forma completamente aleatória.
Guess what? Pode mesmo.
Uma bíblia das teorias da conspiração, Utopia dispara em
todas as direcções desde o primeiro episódio. Achas que a Cowspiracy era má?
Espera até ouvires o resto.
Espera até ouvires um serial killer sem remorsos argumentar
RAZOAVELMENTE com uma mãe as vantagens de cortar a garganta ao filho
constipado. Espera até perceberes a facilidade com que podemos ser influenciados. Aliás, não esperes.
Queres mais motivos? Que tal humor negro imprevisível e dependente
da interacção entre personagens? Uma espécie de Star Wars mais mórbido e
passado na Grã-Bretanha contemporânea. Muito ao género de Frank (filme de 2014
com Michael Fassbender e Domhnall Gleeson) onde são os intervenientes e as suas acções
que guiam o enredo e não o contrário.
Será de estranhar que as produções britânicas tenham TÃO
melhor qualidade que grande parte das americanas? Os escritores parecem estar
muito mais cientes que as grandes histórias partem das personagens e não o
contrário. Enfim, são opções…
A extrema violência da série condenou-a a um cancelamento
prematuro (só tem duas temporadas de 6 episódios cada).
Isto poder-me-ia deixar triste, não fosse pela mais
maravilhosa notícia: David Fincher, um dos melhores realizadores vivos, irá dirigir uma adaptação de Utopia para a HBO (Game of Thrones, Boardwalk
Empire, The Wire, etc…). Com um argumento assinado pela escritora de
Gone Girl (o mais recente sucesso do cineasta), esta pode vir a
ser uma das mais fascinantes adaptações televisivas de todos os tempos.
Utilizando o exemplo da quiche:
Tarantino + Fincher +
Edgar Wright = Utopia
Se isto não te soa brutal e imperdível, acho que não tens
direito a opinar sobre nada na vida. Just kidding, mas a sério: mete uns óculos
e vai à procura dela lá fora. Pode ser que nunca mais queiras largar essa
croma.
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